Por Charlotte Fermum Lessa
A prática da inclusão social requer um preparo e dedicação especiais. Centenas de professores formam-se anualmente no Brasil, sem nem ao menos saber o que significa trabalhar com alunos deficientes, particularmente, deficientes intelectuais. Não se põem no currículo da maioria das faculdades de Pedagogia matérias relacionadas com este tema. Levando em conta o elevado índice de deficiência intelectual em nosso país, esta atitude parece revelar certo preconceito, ou, no mínimo, indiferença.
A filosofia da inclusão de alunos deficientes em salas de aula convencionais pegou a maioria dos professores de “calças curtas”. A idéia de inclusão, apesar de excelente, requer muito mais preparo e atenção por parte da nossa liderança educacional, do que se lhe tem concedido.
A idéia que se tem do deficiente intelectual é que ele é limitado, e que só consegue produzir até certo ponto, dependendo de seu Quociente Intelectual (QI). Mesmo quem trabalha com educação especial parece permanecer dentro deste limite. Pouco se acredita na sua capacidade de ir além do esperado. Todo professor sabe que qualquer criança não irá, realmente, além daquilo que se espera dela.
Feuerstein surgiu na constelação da educação para despertar a consciência de pais, professores e terapeutas no sentido de que, se acreditarmos que é possível ir além das expectativas, e trabalharmos neste sentido, isto acontecerá. Crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem e com deficiência intelectual, estão se beneficiando da Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural, surpreendendo o mundo com seus resultados.
Espero contribuir para despertar a consciência de educadores e terapeutas, no sentido de buscarem o conhecimento que os levará além da estreita visão que, por várias razões, impede o desempenho do deficiente intelectual e da criança com dificuldades de aprendizagem; e despertar, também, o interesse por mudar os conceitos arcaicos e comodistas, incentivando sua atuação em favor dos que sofrem os horrores do preconceito e da rotulagem. Com toda certeza, Reuven Feuerstein partilha plenamente deste profundo desejo.
Conheça o Dr. Feuerstein
Reuven Feuerstein nasceu na cidade de Botosan, num pequeno povoado na Romênia, em 21 de agosto de 1921. De origem judia, Reuven tinha oito irmãos, sendo ele o quinto filho. O pai era rabino.
A mãe de Reuven costumava reunir os nove filhos aos sábados, pedindo-lhes que recordassem as coisas importantes que aprenderam durante a semana. Assim, cada filho relatava detalhadamente o que havia aprendido na escola e fora dela, como havia aprendido e que dificuldades haviam conseguido superar. Este costume familiar exerceu forte influência sobre a vida de Feuerstein, ajudando-o a solucionar seus próprios problemas depois de adulto.
Além desse aspecto cultural específico ligado ao respeito pelo passado, esses encontros estavam muito relacionados à questão da transferência de aprendizagens: relembrar e aplicar, sempre acompanhados da valorização das aprendizagens e da ampliação de seus significados. Essa intermediação intencional desencadeada pela mãe junto às crianças parece ter marcado profundamente o menino Reuven e seus irmãos.
Aos três anos de idade aprendeu a ler a Torá. Aos sete anos, já na escola, aprendeu sua língua materna, o iídiche. Com frequência era chamado pelos colegas para ajudá-los na leitura e na compreensão dos textos. Nessa época ensinou um rapaz de quinze anos a ler. Este jovem era considerado o “tolo da cidade”. Esta experiência revelou a Feuerstein que a mediação é um excelente instrumento de modificabilidade, e que as pessoas, não importa seu passado, ou sua idade, são modificáveis. Ele provou isto quando, aos nove anos, ensinou um senhor de sessenta anos a ler a Bíblia.
Em abril de 1944 emigrou para Israel onde se casou com Bertha Gugenheim, com quem teve quatro filhos. Mais tarde lecionou na Escola Agrícola de Mikvet-Israel, perto de Tel Aviv, onde teve contato com cerca de trezentas crianças e jovens, vítimas do Holocausto, consideradas deficientes intelectuais irrecuperáveis. Aceitou o desafio de trabalhar com essas pessoas, obtendo cem por cento de sucesso. Cada uma delas se tornou um cidadão normal, útil e produtivo.
Em 1949 teve um princípio de tuberculose e aproveitou o período que passou hospitalizado (seis meses) para aprender inglês, francês e alemão.
Em 1952 formou-se em Psicologia Geral; em 1954, licenciou-se em Psicologia; em 1970 obteve o grau de doutor em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade de Sorbonne, Paris. Foi aluno de Piaget e trabalhou com André Rey.
Em 1980 publicou o Programa de Enriquecimento Instrumental – PEI, e seu modelo de psicodiagnóstico – LPAD – Avaliação Dinâmica do Potencial de Aprendizagem. Nesses trabalhos suas teorias educacionais são transformadas em sistemas de intervenção e avaliação. Em 1988 lançou o livro Don’t Accept me as I Am (Não me Aceite Como Sou), que sintetiza suas pesquisas. Em 2003, com o filho, Rafi, criou a Avaliação Dinâmica da Propensão Para a Aprendizagem – LPAD-B, e o Programa de Enriquecimento Instrumental Básico – PEI-B.
Atualmente o PEI é aplicado em cerca de 50 países. No Brasil, o PEI é aplicado em todas as escolas públicas de Ensino Médio do Estado da Bahia.
A Modificabilidade Cognitiva Estrutural
Talvez você esteja se perguntando:
- Por que modificabilidade, e não mudança?
Porque mudança refere-se a toda transformação produzida por processos de desenvolvimento e amadurecimento:
· Pela idade
· Pelo desenvolvimento biológico – crescimento
· Pela evolução das capacidades – inteligência.
Modificabilidade
A MODIFICABILIDADE implica em transformações da estrutura do intelecto para melhor adaptação às necessidades e às situações da vida. Consiste no distanciamento significativo do curso normal do desenvolvimento do indivíduo determinado pelo contexto genético, neurofisiológico e pela experiência educativa.
Na Modificabilidade a mudança é permanente, contínua e sistemática; é quantitativa, consistente e intrínseca; é flexível, adaptável e disponível.
Cognitiva
O sentido do termo COGNITIVA nos remete à capacidade de processar informações. Está intimamente relacionada com aprendizagem e com capacidade de adaptação, sendo dependentes dos processos de input, elaboração e output.
Estrutural
E por que ESTRUTURAL? Porque a cognição sofre transformações de ordem sistêmica e multiponencial: atenção, percepção, memória, planificação, controle, expressão. Muda-se toda sua maneira de funcionar. A modificabilidade, depois de instalada (cristalizada) tende a ser vitalícia.
Aceitação Passiva x Modificação Ativa
“O que frequentemente ocorre é uma aceitação tácita da dificuldade, às vezes, até por uma chamada questão ‘humanitária’ de não exigir daquele que não pode responder. Diante desta situação Feuerstein distingue duas posturas básicas frente ao desafio de atender uma pessoa com retardo, posicionando-se pela segunda:
1. Aceitação passiva
2. Modificação ativa.
Na primeira, relaciona os seguintes preconceitos:
· o indivíduo retardado é incapaz de mudar;
· não vale a pena fazer grandes investimentos;
· a instrução deve ser o mais concreta possível, pois essas pessoas não conseguem abstrair;
· deve-se investir precocemente na preparação para o trabalho, para permitir a independência;
· o indivíduo atrasado deve permanecer num ambiente mais uniforme e seguro que não lhe seja hostil;
· deve-se solicitar trabalhos que não ofereçam riscos, mesmo que haja interesse.
A segunda postura, a de modificação ativa, com a qual Feuerstein fortemente se identifica, baseia-se nos seguintes pressupostos:
· o ser humano é um sistema aberto a mudanças, portanto o indivíduo com retardo pode, também, modificar-se;
· a instrução deve favorecer o desenvolvimento das funções cognitivas;
· o indivíduo deve receber programa de instrução acadêmica enquanto estiver motivado para tal e fazendo progressos;
· a integração é bem vista e produtiva, portanto, permanecer junto a estudantes ‘normais’ em situações específicas onde possam ser ativos, é muito favorável;
· deve-se oferecer conteúdo funcional de linguagem escrita e matemática que permita independência, bem como preparar para locomoção independente.”
A Teoria na Prática
E como lidar com as recusas, a desatenção, a falta de apoio da família no caso de crianças com déficits cognitivos? Se estamos falando de inclusão, elas provavelmente estarão inseridas em escolas convencionais que, na maioria dos casos no Brasil, são constituídas de classes superlotadas. Como dar atenção a elas? Como fazer para que elas se interessem, que acreditem em si mesmas, que sintam que vale à pena lutar? Como lhes mostrar que são pessoas de valor, que são capazes, que não são, em nada, menos importantes que os colegas? Aí está o grande desafio.
Assim como nem todos os músicos são Carlos Gomes, nem todos os médicos são Ben Carson, nem todos os cientistas são Einstein, e nem todos os dramaturgos são Shakespeare, assim, nem todos os professores são gênios.
Mas, anime-se: gênios, ou não, eles têm poder para escolher:
· Crer no potencial da criança;
· Estar dispostos a investir nela e se cansar por elas;
· Perseverar;
· Repetir os mesmos ensinamentos centenas de vezes se for preciso;
· Usar e abusar da criatividade na hora de repetir;
· Extravasar bom humor;
· Ser um professor mediador;
· Amar.
Note o perfil de um professor mediador, segundo L. Tebar Belmonte:
1. Experiente.
· Domina os conteúdos da matéria.
· Faz planejamento e antecipa possíveis problemas e soluções.
2. Estabelece metas.
· Favorece a perseverança.
· Desenvolve hábitos de estudo.
3. Tem a intenção de facilitar a aprendizagem significativa.
· Favorece a transcendência.
· Direciona o desenvolvimento de estratégias.
· Enriquece as habilidades básicas superando as dificuldades.
4. Estimula a busca pela novidade.
· Fomenta a curiosidade intelectual, a originalidade e o pensamento divergente.
5. Potencializa o sentimento de competência.
· Favorece uma autoimagem realista
· Cria uma dinâmica de interesse por alcançar novas metas.
6. Ensina o que fazer, como, quando e por quê.
· Ajuda a mudar o estilo cognitivo dos alunos controlando sua impulsividade.
7. Compartilha as experiências de aprendizagem com os alunos.
· Potencia a discussão reflexiva.
· Fomenta a empatia com o grupo.
8. Dá atenção às diferenças individuais dos seus alunos.
· Elabora critérios e procedimentos para tornar explícitas as diferenças psicológicas dos estudantes.
9. Desenvolve nos alunos atitudes positivas.
· Potencia o trabalho individual, independente e original.
· Levando-os a praticar valores na sua conduta dentro de sua realidade sociocultural.
Você já deve ter percebido que, apesar de não precisar ser nenhum gênio, o professor mediador carece de algumas características que, resumidas em duas simples palavras poderiam ser interpretadas como “DEDICADO / INTERESSADO”.
Charlotte Fermum Lessa é natural de Bremen, Alemanha, formada em Pedagogia, pós-graduada em Psicopedagogia, especialista em PEI – Programa de Enriquecimento Instrumental níveis I e II de Reuven Feuerstein. Presidente e fundadora do Instituto de Desenvolvimento Humano Kathia Lessa. Além de tradutora e intérprete, Charlotte é também escritora, com oito obras publicadas pela Casa Publicadora Brasileira, na área infantojuvenil.